terça-feira, 23 de julho de 2013

A filosofia neomarxista de Žižek ou “uma religião ao avesso”

Leonardo Matos
23 de julho de 2013

Recentemente a esquerda brasileira regozijou-se com mais uma visita de seu mais novo (velho) profeta, o filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Žižek, o qual foi entrevistado no programa “Roda Viva”, da TV Cultura no último dia 08 de julho, levantando a bandeira de uma esquerda filosoficamente moderna, que assimila os erros do passado e que, fiel às suas origens,

consegue abrir novos “caminhos emancipatórios” para a humanidade ao adotar uma nova filosofia revolucionária. O filósofo defendeu, como de costume, as “causas perdidas”, e lamentou a perda do espírito revolucionário da esquerda.

O palavreado um tanto quanto intelectualizado e as referências que faz o filósofo conferem-lhe uma aparente autoridade perante seus ouvintes e leitores, chegando até a intimidar alguns e fazendo com que os militantes, já inebriados dentro da cultura e da dogmática marxista, entrem novamente no velho esquema de autoconvencimento contínuo de seus próprios dogmas e sábias certezas universais. Em outra visita ao Brasil inclusive, em maio de 2011, Žižek foi tratado como “A novidade do comunismo”, em uma matéria publicada pelo jornal O Globo.

Mas, se nos propusermos a analisar mais a fundo a filosofia neomarxista proposta pelo “cumpanheiro” esloveno, identificaremos a que ponto vai chegando, ao logo das décadas, o delírio marxista. Inevitavelmente o marxismo transforma-se, cada vez mais, em uma religião, mas uma religião às avessas. Transfigurou-se em um dogma espiritual oco, que apesar de conter em si todas as características da religião, ao mesmo tempo brada fortemente contra a existência da alma e da divindade.

A necessidade cada vez maior de lutar contra a civilização e a religião cristã esconde, no fundo, certo nível de auto reconhecimento dos materialistas dentro do cristianismo e do espiritualismo. De formas tortas eles, pouco a pouco, descobrem seu espirito, ainda que não o identifiquem como tal.

Não posso afirmar se a filosofia neomarxista de Žižek, de uma forma proposital “imita” a religião para, ludibriando os espíritos honestos, atingir seu intento, ou se ele segue simplesmente o fluxo natural da vida humana, a qual tende necessariamente ao espírito e a Deus. O fato é que os crentes do materialismo demostram cada vez mais, à medida que sua filosofia (teologia?) avança, que seu materialismo é na verdade um espiritualismo no avesso. Uma manifestação genérica da própria existência espiritual humana a qual, em ultima análise, é a própria existência humana de fato, já que não há outra existência humana real, que não a espiritual, como eles próprios vão descobrindo, talvez a contragosto. A máxima de que “todas as estradas levam a Roma” (sublinhe-se, “a Roma”), vai ganhando neste contexto uma profundidade filosófica interessantíssima.

No capitulo de introdução do seu livro, “Vivendo no Fim dos Tempos”, (capitulo curiosamente intitulado “A perversidade espiritual do Céu”) Žižek nos relata uma das condições para que, na opinião dele, a jornada emancipatória da humanidade prossiga sua marcha histórica rumo à era messiânica comunista. Descreve o autor:

"O locus communis `E preciso ver para crer!´ deveria ser sempre lido com sua inversão, `E preciso crer para ver!´. Apesar da tentação de contrapor esses pontos de vista – como o dogmatismo da fé cega versus a abertura para o inesperado –, é preciso insistir na verdade da segunda versão: a verdade, ao contrario do conhecimento, é, como um Evento badiouano, algo que só o olhar engajado, o olhar do sujeito que `crê´ consegue enxergar. Tomemos como exemplo o amor: no amor, só o amante vê no objeto de amor aquele X que causa amor, o objeto-paralaxe, portanto a estrutura do amor e a mesma do Evento badiouano, que também só existe para quem se reconhece nele: não existe Evento para o observador objetivo não engajado. Sem essa posição engajada, por mais acuradas que sejam as descrições do estado de coisas, elas não conseguem gerar efeitos emancipatórios; em ultima analise, só tornam mais pesado o fardo da mentira ou, para citar Mao outra vez, `erguem a pedra para larga-la aos próprios pés´.” [1]

Assim, este “crer para ver”, essa atitude genuinamente de fé sobrepujando a razão e a matéria, tornou-se, na filosofia neomarxista de Žižek, a condição para que a ideologia produza os resultados materiais a que se propõe desde o seu início. O Evento emancipatório "somente existe para quem se reconhece nele", assim como na teologia cristã, a salvação só existe para quem se reconhece no Cristo. O esloveno ainda ressalta que "[sem essa fé] por mais acuradas que sejam as descrições do estado de coisas, elas não conseguem gerar efeitos emancipatórios", assim como (ainda no paralelo com cristianismo) um individuo, ainda que profundo conhecedor de toda a teologia cristã, não tendo a fé e não se reconhecendo no Cristo, não conseguirá a salvação genuína.

Ao fazer estas constatações, fica claro por que a Igreja Católica sempre considerou o marxismo como anticristão e, eu diria mais, como a religião anticristã por excelência. À medida que a filosofia marxista progride e se ramifica, toma cada vez mais a forma de um anticristianismo em um sentido profundo do termo, tomando muitas vezes formas filosóficas de aparência religiosa e reconhecendo que, a exemplo da salvação cristã, a salvação materialista marxista necessita que seu crente dê um “salto de fé” e se reconheça dentro de eventos que, para os “não crentes”, não possuem nenhum significado transcendente.

O filósofo-profeta da religião marxista reitera sua cosmovisão “religiosamente não religiosa” quando compara a luta marxista ao apostolado de São Paulo, escrevendo:

"Este livro, portanto, é um livro de luta, segundo a definição surpreendentemente pertinente de luta emancipatória dada por são Paulo: `Pois nosso combate não é contra a carne e o sangue, mas contra os principados, contra as autoridades, contra os dominadores [kosmokratoras] deste mundo de trevas, contra os espíritos do mal que povoam as regiões celestes´ (Efésios 6,12). Ou, traduzido para a linguagem de hoje: `Nossa luta não é contra indivíduos corruptos reais, mas contra aqueles que estão no poder em geral, contra sua autoridade, contra a ordem global e contra a mistificação ideológica que os sustenta´.” [2]

Vemos assim que, além de contradizer os próprios fundamentos materialistas da filosofia marxista, nos quais a matéria define a consciência e suas manifestações, a filosofia marxista chega hoje no ponto em que inverte suas bases originais, depositando na fé, na crença consciente e proposital em um resultado ainda incerto, a condição necessária para a sobrevivência e o prosseguimento do “apostolado” marxista. O próprio Marx ficaria perplexo ao constatar as águas pelas quais sua filosofia passou a navegar ao longo do tempo, posto que ele mesmo escreveu:

"Assim, a moral, a religião, a metafísica, e o restante da ideologia, bem como as formas da consciência a elas correspondentes, perdem logo toda a sua aparência de autonomia. Não têm história, não têm desenvolvimento, ao contrário, são os homens que, desenvolvendo sua produção material e suas relações materiais transformam, com a realidade que lhes é própria, seu pensamento e também os produtos do seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência.” [3]

Desta forma, inebriado e imerso em sua própria linha de raciocínio controversa, Žižek (e o próprio marxismo, diga-se de passagem) não percebe a contradição. Se a filosofia materialista de Marx define que diante da realidade material a consciência perde sua autonomia e que “são os homens que, desenvolvendo sua produção material e suas relações materiais transformam, com a realidade que lhes é própria, seu pensamento e também os produtos do seu pensamento” não se pode pensar de forma materialista e ao mesmo tempo defender que a “emancipação humana” depende de “crer para ver”, posto que a crença é genuinamente um “produto do pensamento” e que o próprio materialismo pressupõe que o homem não possui essa autonomia de consciência e de pensamento. Em essência, se a premissa fundamental é a de que a realidade material define o pensamento e seus produtos, não se pode depositar justamente nos produtos do pensamento a condição para se definir a realidade material.

Diante disso, podemos supor ao menos dois resultados possíveis. Haverá aqueles que perceberão essas profundas contradições que, ainda que implicitamente, já eram previsíveis desde o germe do marxismo e cujo desenvolvimento de sua filosofia apenas tornou mais evidentes. Estes provavelmente abandonarão a “religião sem cabeça”, a “espiritualidade oca”, “o dogma ao avesso”, e provavelmente reconhecerão que toda filosofia tende ao espirito e não à matéria. Reconhecerão que a consciência humana e o espirito humano são independentes da realidade material e que eles é que podem definir a realidade material.

Haverá, no entanto, aqueles que se recusarão a enxergar essa contradição que a própria filosofia marxista já escancarou sobre si mesma. Estes darão o “salto de fé” em busca da “salvação materialista” a qual o marxismo chama de “emancipação humana”. Estes irão seguir até o fim esse “dogma de ponta cabeça”, o qual eles abraçam com toda força de suas almas, mesmo recusando-se a acreditar que essa alma exista. É, por excelência, e mais do que nunca a religião do anticristo.




[1] ŽIŽEK, Slavoj. Vivendo no Fim dos Tempos. 1ª Edição. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012, p. 15.
[2] ŽIŽEK, Slavoj. Vivendo no Fim dos Tempos. 1ª Edição. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012, p. 16.
[3] MARX, Karl. A ideologia Alemã. 2ª Edição. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001, p. 19-20.

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